sexta-feira, fevereiro 16, 2007

(523) O VOTO E A NAÇÃO

O país começa a ficar cansado de si próprio. Isto é: doentiamente queixa-se de forma recorrente das escolhas eleitorais que faz e que não faz. Parece comprazer-se num exercício de auto flagelação quando faz, isto é, quando vota. Assobia olimpicamente para o lado das canseiras quotidianas quando não faz, isto é, quando se abstém.

Vai ao arrepio do politicamente correcto estabelecido desde o último domingo considerar preocupante que mais de cinco milhões de portugueses não se tenham dado ao trabalho de votar no último referendo. Os optimistas do sistema proclamam que está tudo bem, que houve mais gente a votar, que houve mobilização cívica. E que o instituto do referendo está a salvo de tentativas de homicídio legislativo por parte de uma nomencaltura institucional que no fundo detesta a maçada

Eu contraponho que não vejo motivo para tanta celebração, a não ser salvar a pele do que está e dos que estão. Assim como uma espécie de suspiro institucional por o pior ter passado sem que o barco fosse ao fundo, apesar de seriamente danificado. A verdade é que votou menos gente do que no referendo sobre a regionalização. A verdade é que votou tanta gente como nas eleições europeias e aí todos consideram um péssimo sinal tanta abstenção. E que a mobilização mediática no debate, no esclarecimento e no acompanhamento da campanha foi suficientemente intenso para mobilizar os cidadãos, pelo que não há desculpas para o alheamento de mais de cinco milhões de recenseados, entre os quais se continuam a encontrar inúmeros falecidos que o plano tecnológico e o MIT ainda não foram capazes de eliminar dos cadernos eleitorais.

O problema está na indiferença cívica. A cidadania está em baixo, está fora de moda.

Por princípio e convicção repugna-me a ideia do voto obrigatório e da penalização dos abstencionistas. Repugna-me tanto como a prosápia lusitana de café, o peito aberto às balas na roda de amigos, a crítica intriguista e em surdina a que sucede a abstenção eleitoral e a deserção da democracia. Aliás, se houvesse voto obrigatório temo pela inconsequência da sanção, já que é de prever que o ilícito prescrevesse antes de sancionado, dada a ineficácia dos sistemas judiciário e administrativo.

Não será, pois, de admirar que o país, a bem dizer um quarto dos eleitores, que votou sim no referendo, esteja daqui a uns meses a vituperar a esquerda quando constatar que o aborto clandestino não acabou como José Sócrates prometeu que ia acabar se ganhasse o Sim. Nada de novo no que diz respeito a Sócrates, que costuma falhar as promessas. Nada de novo em relação ao país, que passa a vida a queixar-se das suas próprias decisões. Digam-me sinceramente: onde é que está alguma modernidade nisto?
(publicado na edição de hoje do Semanário)

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