sexta-feira, dezembro 08, 2006

(32) PÉROLAS DO POLITICAMENTE CORRECTO

O próximo referendo sobre o aborto desencadeou o habitual e infeliz desfile de lugares-comuns com que normalmente se procura disfarçar dificuldades políticas conjunturais, mas que são ideias perniciosas que é importante desmontar. Todas elas assentam num profundo temor do confronto de ideias e numa estéril preocupação com consensos pueris, falsos, artificiais e verdadeiramente estranhos à democracia.
Primeira pérola: a de que fica mal ao Presidente da República tomar posição pública sobre o seu sentido de voto no referendo. Eu defendo que Cavaco Silva devia informar os cidadãos sobre se vota sim ou se vota não no referendo. Não vejo em que é que isso diminuiria a função ou o titular. Pelo contrário, a falta de posição é que diminuirá a dimensão política do titular. E não se argumente com a ideia tão portuguesinha que o Presidente da República o é de todos os portugueses, que deve unir e não dividir e que tomar posição é dividi-los. Essa é uma visão meramente paroquial das instituições e da democracia.

O Primeiro-Ministro e os membros do Governo também o são de todos os portugueses e tomam posição e bem, independentemente de não tomarem posição igual à minha. É bom para o esclarecimento eleitoral e para a transparência da actividade política que se saiba o que os políticos, sobretudo os que exercem funções de maior responsabilidade, pensam dos assuntos que dizem respeito à comunidade. Não que devam sair à rua de megafone em punho fazendo campanha à porta do metropolitano ou nas feiras ou mercados.Mas até depois de Maria Cavaco Silva ter dito em entrevista concedida esta semana à Visão, que acha que a Lei está bem como está, menos se entenderia que Cavaco Silva não o fizesse.

Segunda pérola: a de que a pergunta é uma questão de consciência que não deve ser partidarizada. Este foi o argumento politicamente correcto que o PSD utilizou para não tomar posição. Não vejo por que razão os partidos políticos hão-de estar inibidos de tomar posição sobre o assunto. Têm obviamente a liberdade de não o fazer, mas também a de o fazer. Sem que com isso violem a consciência de quem quer que seja.Normalmente quando um partido usa este argumento é porque não quer assumir que existe uma profunda divisão interna sobre a matéria em causa. O que também não tem mal nenhum, mas há partidos assim, que têm medo de se ver ao espelho.

Terceira pérola: a de que os partidos devem dar liberdade de voto. Esta é normalmente consequência da pérola anterior. Lá veio o PSD comunicar com pompa mas muito pouca circunstância que dava liberdade de voto. Esta pérola já não é propriamente politicamente correcta mas apenas politicamente tola. Os partidos não podem dar uma coisa que o eleitor tem sempre, mesmo que os partidos não o dêem.Seria bom que num debate verdadeiramente civilizacional, que tem a ver com o essencial do nosso modo de ver a vida e a sociedade, ninguém utilizasse argumentinhos para se furtar à responsabilidade de uma posição. É que isso tem nome no dicionário e não é dos mais bonitos.

(publicado na edição de hoje do Diário de Aveiro)

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